Charge do voto de cabresto
mostrando o político levando o eleitor para votar, do cartunista Storni,
publicada na revista Careta, nº 974, Pg.14, de 1927. Créditos: Storni / Revista
Careta / Biblioteca Nacional.
Voto na Primeira Reública
A charge em destaque foi publicada, em 1927, na antiga revista Careta,
que circulou por 53 anos, de 6 de junho de 1908 a 5 de novembro de
1960. O seu criador Jorge Schmidt afirmava em editorial que pretendia fazer da
revista uma publicação de amplo alcance entre os leitores, com um caráter mais
popular e principalmente de leitura mais espirituosa e divertida, pois lançava mão da sátira gráfica,
charges e caricaturas políticas e sociais. Um de seus colaboradores que fez a
imagem em destaque é o gaúcho Alfredo Storni. Ele é reconhecido por ser um
grande caricaturista e chargista brasileiro, sendo um dos principais chargistas
da Careta entre os anos 1920 e meados dos anos 1930. Seu traço, repleto de
alegorias, era bem característico das primeiras décadas do século XX.
Ao olhar a sua charge percebe-se que é
uma sátira de um fato concernente ao processo eleitoral da época, em que o
eleitor tornou-se numa metáfora depreciativa. Ele é exposto com a cabeça de um
burro, cabisbaixa, submissa e é levado para onde aquele que está com o cabresto
- figura de poder sobre o animal - deseja. Devido ao fato do eleitor estar
sendo conduzido isso dá a entender que ele irá fazer o que o seu guia quer, ou
seja, votar no candidato por ele indicado. Além disso, ele carrega um caderno
em suas mãos que é sinônimo de que é letrado, exigência expressa na
Constituição de 1891..
Tudo ocorre sob o olhar carregado de enfado da soberania do voto,
figurada na pessoa feminina à esquerda da imagem. Isso contrasta com a
expectativa da expressão de alegria que a soberania deveria ter diante da
realização de eleições, já que o voto deveria expressar a manifestação da
maioria quantitativa, habilitada a exercê-lo pela Constituição, e não o poder
de indivíduos isolados, para a escolha dos políticos. Por isso a sua fala chateada
contra a passividade corriqueira do eleitor, ao vê-lo como besta. O político
responde a pergunta dizendo que o Zé (designação comumente utilizada na
imprensa para designar o povo brasileiro), nome dado ao votante, não é besta,
mas é burro, como é exposto no iconotexto.
Até este ponto foi tratado o que podemos inferir ao olhar a imagem.
Daqui em diante haverá a associação dos elementos interpretados com o conteúdo histórico
escrito. Como já foi dito, a charge aborda fatos ou acontecimentos específicos
e, portanto a sua compreensão torna-se maior quando conhecemos o contexto onde
foi elaborada.
O que leva o indivíduo pelo cabresto é o político que muitas vezes é
indicado pela figura do coronel de uma região. Tal termo ainda existente na
Primeira República para designar os fazendeiros ou comerciantes mais ricos da
cidade. Ele mantém o seu poder, pois integra as oligarquias que controla os
resultados das urnas por meio de seu "curral eleitoral". São os
eleitores controlados pelos coronéis em troca dos favores concedidos por estes
em troca do voto dos trabalhadores, ou ainda pela imposição à força, através dos
capangas armados, subordinados aos grandes proprietários locais. Ou seja, na
imagem tal situação encontra-se expressa: ao invés do eleitor por vontade
própria levar o seu político a urna, é o cabresto deste que vai fazer aquele
comparecer a votação e determinar o seu voto.
Os eleitores controlados pelo “voto de cabresto” são uma peça
fundamental para que os interesses de autonomia dos coronéis fossem atendidos
pelo Governo. Portanto, para o coronel quanto maior o número de eleitores
sujeitos à sua influência maior é o seu poder. Tal lógica não se refere apenas
às lideranças locais, mas, envolve também as disputas políticas no âmbito
regional (governadores), formando o elo, que se colocava entre o coronel e o
poder federal, baseada nos mesmos princípios de troca de favores, de maior
autonomia e manutenção do poder. Essa era a lógica da chamada “política dos
governadores”, que apoiavam no Congresso os projetos do Poder Federal.
Vale ressaltar que a
Constituição de 1891 restringia o voto aos alfabetizados e o declarava de
caráter facultativo. Assim, o caderno nas mãos do guiado na imagem significa a
condição de alfabetizado exigida pela lei. Outro ponto é a falta de
espontaneidade do exercício da cidadania diante do constrangimento de tais
elementos. Constrangimento esse denunciado pelos integrantes do movimento
tenentista contra as oligarquias que, segundo eles, haviam transformado o
Brasil em “feudos”, cujos senhores eram sustentados pela política dominante.
Ressalte-se nesse sentido que quem realizava a legitimação dos votos e
dos diplomas nas eleições era a Comissão de Verificação de Poderes liderada por
políticos da legislatura anterior (uma nova regra estabelecida, já que antes
era liderada pelo parlamentar mais idoso presumidamente eleito). Logo, fraudes
tornavam-se mais fáceis. Outro dado é que São Paulo e Minas Gerais eram os
detentores das maiores bancadas no Congresso, o que aumentou o seu poder em
relação aos outros estados.
Dessa forma, é válido pensar até que ponto as regras eleitorais vigentes
permitem efetivamente a soberania do poder aclamado pelo voto. Dizer que
vivemos num sistema democrático, federativo e liberal pode não significar a
representação de todos. Quantas são as estratégias e jogos políticos que não
satisfazem as demandas sociais?
O discurso dos republicanos quando da instauração do novo regime era
bastante democrático. Um sistema que se resolvia em negociatas; nomes
previamente estabelecidos, pela concordância das oligarquias, ganhavam as
eleições até esse pacto romper-se.
Será que
ainda hoje possuímos alguns desses problemas? Será que uma reforma política
resolveria a falta de representatividade reivindicada nas manifestações de
junho de 2013? As regras seriam mudadas em favor de quem? Como seria possível
pressionar os poderes legislativo e executivo para “limpar” a política de
esquemas administrativos que “bestializam” a população? Pode se dizer que os
casos de “mensalões” e similares nos governos da atualidade compartilham da
lógica da política da Primeira República no que também concerne a “compra” de
apoios? As ações atuais do presidente da Câmara de Deputados, Eduardo Cunha, pode ser comparada a tais estrategemas que mínguam a verdadeira representatividade dos poderes?
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