sexta-feira, 7 de agosto de 2015

Primeira República já preconizava os estratagemas políticos para minguar a representatividade.



Charge do voto de cabresto mostrando o político levando o eleitor para votar, do cartunista Storni, publicada na revista Careta, nº 974, Pg.14, de 1927. Créditos: Storni / Revista Careta / Biblioteca Nacional.


           
                                                                          Voto na Primeira Reública
  
  A charge em destaque foi publicada, em 1927, na antiga revista Careta, que circulou por 53 anos, de 6 de junho de 1908 a 5 de novembro de 1960. O seu criador Jorge Schmidt afirmava em editorial que pretendia fazer da revista uma publicação de amplo alcance entre os leitores, com um caráter mais popular e principalmente de leitura mais espirituosa e divertida, pois lançava mão da sátira gráfica, charges e caricaturas políticas e sociais. Um de seus colaboradores que fez a imagem em destaque é o gaúcho Alfredo Storni. Ele é reconhecido por ser um grande caricaturista e chargista brasileiro, sendo um dos principais chargistas da Careta entre os anos 1920 e meados dos anos 1930. Seu traço, repleto de alegorias, era bem característico das primeiras décadas do século XX.
      Ao olhar a sua charge percebe-se que é uma sátira de um fato concernente ao processo eleitoral da época, em que o eleitor tornou-se numa metáfora depreciativa. Ele é exposto com a cabeça de um burro, cabisbaixa, submissa e é levado para onde aquele que está com o cabresto - figura de poder sobre o animal - deseja. Devido ao fato do eleitor estar sendo conduzido isso dá a entender que ele irá fazer o que o seu guia quer, ou seja, votar no candidato por ele indicado. Além disso, ele carrega um caderno em suas mãos que é sinônimo de que é letrado, exigência expressa na Constituição de 1891..
     Tudo ocorre sob o olhar carregado de enfado da soberania do voto, figurada na pessoa feminina à esquerda da imagem. Isso contrasta com a expectativa da expressão de alegria que a soberania deveria ter diante da realização de eleições, já que o voto deveria expressar a manifestação da maioria quantitativa, habilitada a exercê-lo pela Constituição, e não o poder de indivíduos isolados, para a escolha dos políticos. Por isso a sua fala chateada contra a passividade corriqueira do eleitor, ao vê-lo como besta. O político responde a pergunta dizendo que o Zé (designação comumente utilizada na imprensa para designar o povo brasileiro), nome dado ao votante, não é besta, mas é burro, como é exposto no iconotexto.
      Até este ponto foi tratado o que podemos inferir ao olhar a imagem. Daqui em diante haverá a associação dos elementos interpretados com o conteúdo histórico escrito. Como já foi dito, a charge aborda fatos ou acontecimentos específicos e, portanto a sua compreensão torna-se maior quando conhecemos o contexto onde foi elaborada.
    O que leva o indivíduo pelo cabresto é o político que muitas vezes é indicado pela figura do coronel de uma região. Tal termo ainda existente na Primeira República para designar os fazendeiros ou comerciantes mais ricos da cidade. Ele mantém o seu poder, pois integra as oligarquias que controla os resultados das urnas por meio de seu "curral eleitoral". São os eleitores controlados pelos coronéis em troca dos favores concedidos por estes em troca do voto dos trabalhadores, ou ainda pela imposição à força, através dos capangas armados, subordinados aos grandes proprietários locais. Ou seja, na imagem tal situação encontra-se expressa: ao invés do eleitor por vontade própria levar o seu político a urna, é o cabresto deste que vai fazer aquele comparecer a votação e determinar o seu voto.
    Os eleitores controlados pelo “voto de cabresto” são uma peça fundamental para que os interesses de autonomia dos coronéis fossem atendidos pelo Governo. Portanto, para o coronel quanto maior o número de eleitores sujeitos à sua influência maior é o seu poder. Tal lógica não se refere apenas às lideranças locais, mas, envolve também as disputas políticas no âmbito regional (governadores), formando o elo, que se colocava entre o coronel e o poder federal, baseada nos mesmos princípios de troca de favores, de maior autonomia e manutenção do poder. Essa era a lógica da chamada “política dos governadores”, que apoiavam no Congresso os projetos do Poder Federal.
    Vale ressaltar que a Constituição de 1891 restringia o voto aos alfabetizados e o declarava de caráter facultativo. Assim, o caderno nas mãos do guiado na imagem significa a condição de alfabetizado exigida pela lei. Outro ponto é a falta de espontaneidade do exercício da cidadania diante do constrangimento de tais elementos. Constrangimento esse denunciado pelos integrantes do movimento tenentista contra as oligarquias que, segundo eles, haviam transformado o Brasil em “feudos”, cujos senhores eram sustentados pela política dominante.
    Ressalte-se nesse sentido que quem realizava a legitimação dos votos e dos diplomas nas eleições era a Comissão de Verificação de Poderes liderada por políticos da legislatura anterior (uma nova regra estabelecida, já que antes era liderada pelo parlamentar mais idoso presumidamente eleito). Logo, fraudes tornavam-se mais fáceis. Outro dado é que São Paulo e Minas Gerais eram os detentores das maiores bancadas no Congresso, o que aumentou o seu poder em relação aos outros estados.
    Dessa forma, é válido pensar até que ponto as regras eleitorais vigentes permitem efetivamente a soberania do poder aclamado pelo voto. Dizer que vivemos num sistema democrático, federativo e liberal pode não significar a representação de todos. Quantas são as estratégias e jogos políticos que não satisfazem as demandas sociais?
    O discurso dos republicanos quando da instauração do novo regime era bastante democrático. Um sistema que se resolvia em negociatas; nomes previamente estabelecidos, pela concordância das oligarquias, ganhavam as eleições até esse pacto romper-se.
    Será que ainda hoje possuímos alguns desses problemas? Será que uma reforma política resolveria a falta de representatividade reivindicada nas manifestações de junho de 2013? As regras seriam mudadas em favor de quem? Como seria possível pressionar os poderes legislativo e executivo para “limpar” a política de esquemas administrativos que “bestializam” a população? Pode se dizer que os casos de “mensalões” e similares nos governos da atualidade compartilham da lógica da política da Primeira República no que também concerne a “compra” de apoios? As ações atuais do presidente da Câmara de Deputados, Eduardo Cunha, pode ser comparada a tais estrategemas que mínguam a verdadeira representatividade dos poderes?

Nenhum comentário:

Postar um comentário